O guia absoluto sobre como temperar chocolate

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O sonho de todo chocolatier é fazer uma barra de chocolate de alta qualidade: brilhante, resistente ao calor e que emite um satisfatório estalo ao se quebrar. Essas famosas características são obtidas através de uma das etapas mais importantes de toda a fabricação de chocolates: a temperagem. Saber como temperar chocolate é um fator crucial, que pode decidir todo o sucesso ou o fracasso de um produto.

O processo de temperagem consiste em transformar o chocolate derretido em estado líquido para um estado parcialmente cristalizado, pronto para a moldagem ou cobertura. Isso significa gerar uma estrutura específica de cristais na manteiga de cacau presente no chocolate, dando um choque térmico ou a estimulando de outras maneiras.

A temperagem também é responsável por fazer o chocolate contrair depois de cristalizado, permitindo um desenforme fácil e perfeito. Outra característica de um chocolate bem temperado é o derretimento rápido na boca seguido de uma liberação imediata de sabor. Além disso, quando transportado e armazenado da maneira correta, uma boa têmpera aumenta seu tempo de prateleira, reduzindo os riscos do chocolate se recristalizar — um fenômeno que pode resultar em um sério defeito, conhecido como chocolate bloom, ou fat bloom.

O processo de temperagem é então, uma necessidade para criar uma barra de chocolate com um bom tempo de prateleira e de alta qualidade. E para atingir a perfeição, é preciso entender como a manteiga de cacau e seu polimorfismo funcionam. Neste artigo, veremos primeiramente os benefícios da temperagem e as consequências de não realizar a temperagem. Por fim, analisaremos alguns dos principais métodos de temperagem utilizados na indústria, incluindo a utilização de temperadeiras de chocolate, temperagem com Silk, Mycryo e o processo manual de choque térmico.
 

A importância da temperagem para a qualidade do chocolate

As etapas de produção do chocolate consistem em: moer as nibs de cacau com outros ingredientes na formulação correta até se obter uma massa lisa e homogênea; refinar até que pelo menos 90% da granulometria da massa esteja entre 15 e 25 μm (microns); a etapa de conchagem, onde o chocolate é misturado durante várias horas em uma temperatura de 50-65 °C para desenvolver seus sabores únicos e remover os ruins; temperagem, o tema deste artigo; moldagem e resfriamento; depois, o produto está finalmente pronto para receber a embalagem e ser distribuído. Dentre todas essas longas e complexas etapas, a temperagem é uma das mais importantes de todo o processo. Ela define significativamente tanto a aparência física quanto a experiência sensorial do chocolate.

Portanto, a produção de um chocolate de primeira qualidade envolve não somente a seleção e o processamento de matérias primas, mas também de realizar a temperagem corretamente. É esse o processo que faz com que as gorduras presentes na manteiga de cacau se solidifiquem na forma correta e formem uma barra de chocolate brilhante, firme e resistente ao toque. Caso a importância dessa etapa seja negligenciada, uma série de problemas podem ocorrer.
 

Dificuldade para desenformar

Caso o chocolate seja pouco temperado, ele pode não contrair o suficiente durante o resfriamento final, ficando preso na fôrma. A contração do chocolate se dá devido à diferença de densidade entre as partes líquidas e sólidas da manteiga de cacau. Se os cristais da massa de cacau não estiverem na forma correta, a diferença na densidade pode não ser o suficiente para causar a contração necessária para que o chocolate desenforme — resultando em um chocolate machucado por ter sido tirado à força dos moldes (e em um enorme trabalho para limpar as fôrmas, também).

Um chocolate que foi super-temperado também pode apresentar dificuldades na hora de desenformar, mas por um outro motivo: dessa vez, há muitos sólidos na manteiga de cacau quando o chocolate é colocado nas fôrmas para resfriar. Com menos partículas sólidas para cristalizar, a contração ocorre em volume reduzido. Outro ponto é que os cristais formados na massa são maiores e em menor quantidade. A contração do chocolate ocorre durante a etapa de resfriamento, quando os últimos cristais se solidificam, formando conexões entre eles. Menos cristais, apesar de mais largos, resultam em menos conexões, uma contração prejudicada e bombons presos nas fôrmas.
 

Aparência sem vida

bombons cobertos com chocolate mal temperado. Aparência sem vida e opaca
Sem brilho, o chocolate fica opaco e sem graça.

 
Outra característica de um chocolate pouco temperado é a sua falta de brilho e aparência pálida. O belo brilho de um chocolate vêm dos cristais da manteiga de cacau após o resfriamento, quando ela é solidificada em seu estado polimórfico ideal. O problema é que, cristais instáveis podem surgir devido a temperagem incorreta, resultando em um chocolate opaco e sem graça. O chocolate temperado em excesso também possui aparência semelhante devido à sua estrutura grosseira, com cristais maiores e em menor quantidade.
 

Baixa resistência ao toque

Um chocolate pouco temperado derrete facilmente nas mãos devido ao baixo ponto de fusão de seus cristais instáveis. A temperatura dos dedos é um pouco inferior à da boca humana. Então, o ponto de fusão do cristal ideal deve estar entre a temperatura das mãos (por volta de 30 °C) e a da boca (geralmente por volta de 37 °C). Sem a temperagem correta, a cristalização ocorre em uma forma instável, e o chocolate, com um ponto de fusão baixo, derrete facilmente nas mãos.
 

Textura

Um bom chocolate é semelhante à uma joia — além de brilhante e belo, é rígido e resistente. Após o resfriamento, o chocolate mal temperado possui uma textura macia, mole e quebradiça, que derrete facilmente na temperatura ambiente.
 

Fat Bloom

Chocolate com o defeito conhecido como fat bloom
Fat Bloom, um dos defeitos que podem ocorrer no chocolate.

 
E por último, a têmpera mal realizada pode resultar no chamado Fat Bloom. Esse defeito ocorre quando a manteiga de cacau que se cristalizou de maneira instável se re-cristaliza em formas mais estáveis. Isso ocorre de maneira automática devido à natureza da manteiga de cacau. Nesse processo, a gordura se move para a superfície do chocolate, criando uma camada fina de gordura e deixando manchas esbranquiçadas. Isso também pode acontecer com outras gorduras adicionadas ao chocolate, como a lecitina de soja ou o óleo de coco.

Para evitar, ou desacelerar o fat bloom, somente cristais estáveis devem estar presentes ao fim do processo de temperagem.

Apesar de uma das causas mais frequentes do fat bloom estar associada com a temperagem mal executada, ela nem sempre é a causa desse defeito. De qualquer forma, a temperagem se mantém como uma etapa crítica na obtenção de produtos de chocolate de alta qualidade.
 

A manteiga de cacau e os cristais beta V e beta VI estáveis

representação dos cristais da manteiga de cacau

Como descrevemos anteriormente, a gordura da manteiga de cacau pode formar diferentes cristais quando resfriada. Dentre todos os cristais, apenas os chamados beta V e beta VI são estáveis e possuem o ponto de fusão (derretimento) ideal para o chocolate.

Ainda existem controvérsias à respeito de quantos cristais podem se formar na manteiga de cacau, mas é aceito pela maioria dos estudiosos e cientistas que no total são 6 tipos diferentes de cristais.

A forma beta VI é a mais estável de todas, mas é formada apenas parcialmente, depois de um período de tempo em que o chocolate foi cristalizado e armazenado. O processo de temperagem pode produzir apenas cristais do tipo beta V, que são suficientes para dar um belo brilho, longo tempo de prateleira e boa maleabilidade ao chocolate até que parte dele se desenvolva para a forma VI em sua estrutura final.

O importante a se lembrar é que o propósito final da temperagem é formar cristais beta V estáveis no chocolate derretido, de forma que toda a massa consequentemente se cristalize na forma ideal durante o resfriamento.
 

Como temperar chocolate: principais métodos

Em linhas simples, a temperagem na prática consiste em produzir cristais na forma e quantidade correta para fazer com que o resto do chocolate derretido se solidifique nessa mesma forma. Durante o resfriamento final acontece uma reação em cadeia, e os cristais pré-cristalizados induzem o resto da massa a se solidifcarem na mesma forma. Assim, você obtém o produto perfeito, com uma alta concentração de cristais de alta qualidade.

Para se fazer isso, é necessário aquecer o chocolate à uma temperatura em que todos seus cristais são derretidos (cerca de 45-50 °C), em seguida resfriá-lo à uma temperatura que estimule a formação de cristais beta V estáveis (por volta de 27 °C), depois, re-aquecer levemente a massa para derreter todos os cristais instáveis (cerca de até 30-32°C), deixando o chocolate apenas com cristais na forma ideal — a beta V. O gráfico abaixo ilustra a linha do tempo desse processo:

Gráfico mostrando a curva de cristalização do chocolate. O chocolate é aquecido para 50°C, depois resfriado para 27 °C, e reaquecido para 30-32 °C novamente. Em seguida, está pronto para ser utilizado.
Curva de cristalização do chocolate. Clique na imagem para ampliar. Fonte: Izumi, Simone. Loucuras de Chocolate.

 
Diferentes tipos e formulações resultam em curvas de temperagem ligeiramente diferentes. Cada chocolate possui uma concentração X de manteiga de cacau, com seu ponto de fusão ideal próprio. Por isso, trabalhar com chocolate é uma tarefa monogâmica: escolha uma boa marca, domine suas nuances e fique apenas com ela. Bons fabricantes incluem informações à respeito da curva de temperagem no rótulo do produto.

Se você produz seu próprio chocolate, fique atento às origens dos seus frutos de cacau ou das nibs que utiliza. Manter o padrão das características do cacau que você utiliza é importante para não ter surpresas na hora de temperar seu chocolate.

Existem diversos métodos de realizar a temperagem. A melhor forma depende de suas necessidades e recursos.
 

1. Utilizando temperadeiras de chocolate

Temperadeiras de Chocolate
Temperadeiras de Chocolate Contínuas

 
Uma temperadeira de chocolate é a melhor forma de realizar a temperagem com tranquilidade em pequena ou grande escala. Uma temperadeira é basicamente uma trocadora de calor. Cada vez mais modernas, os modelos atuais vêm equipados com sensores capazes de controlar a curva do chocolate automaticamente. Isso permite um fácil controle da têmpera, sem necessidade de utilizar termômetros e sujar suas instalações. Uma temperadeira de chocolate também elimina muito do conhecimento técnico necessário e achismos na hora de realizar a temperagem.

Temperadeiras altamente desenvolvidas possuem unidades de aquecimento, resfriamento e reaquecimento, que permitem controlar a criação de formas estáveis e o derretimento de formas instáveis dos cristais do chocolate. O nível de pré-cristalização, ou seja, a quantidade de manteiga de cacau sólida em comparação com a líquida no chocolate derretido irá depender também de fatores como tempo e intensidade da agitação da mistura. A natureza do processo utilizado pelas temperadeiras de chocolate contínuas trabalham esses fatores com excelência, produzindo chocolates de alta qualidade.

E como sempre, a qualidade do resultado final do chocolate em uma temperadeira depende do conhecimento e da familiaridade do operador com o equipamento e o sistema de temperagem.
 

2. Manualmente

temperagem manual de chocolate

Dar o choque térmico do chocolate manualmente é uma das formas mais antigas e tradicionais de realizar a temperagem. É o meio mais lento, trabalhoso e que faz mais sujeira dentre os principais métodos, porém entrega ótimos resultados se executado corretamente.

Itens necessários

  • Tenha um bom termômetro. Ter um controle preciso das temperaturas do chocolate é fundamental para realizar uma boa temperagem.
  • Pelo menos 4 tigelas que se encaixem.
  • Toalhas
  • Fôrmas para moldar o chocolate
  • Panela para fazer o banho maria

 

Como temperar chocolate manualmente

  • Derreta seu chocolate em banho maria até que ele esteja pelo menos em 45 °C. É importante dizer que passar desse ponto não tem problema. Você pode aquecer seu chocolate até 70 °C sem queimar.
  • Despeje 2/3 do chocolate em outra tigela. Reserve o 1/3 restante, mantendo-o aquecido. Para manter a temperatura desse chocolate, você pode mantê-lo em uma tigela com água morna, por volta de 32-35 °C.
  • Coloque a tigela com os 2/3 de chocolate em banho-maria com água fria para resfriar. A temperatura ideal da água fica entre 15 °C e 20 °C. Mexa o chocolate até que a temperatura abaixe para 26-27 °C. Neste ponto, a massa começará a ficar mais espessa, sinal de que os cristais foram criados com sucesso. Nesta etapa, o chocolate está com cristais estáveis e instáveis formados e precisa ser re-aquecido levemente para que sobre apenas os estáveis.
  • Lentamente, adicione o 1/3 de chocolate aquecido que você reservou aos 2/3 de chocolate resfriado. Faça isso pouco a pouco, até que a temperatura suba para 31 °C (30 °C no caso do chocolate ao leite). Nessa temperatura, apenas os cristais beta V estáveis conseguem sobreviver, e o seu chocolate está pronto para ser utilizado.
  • Despeje o chocolate em fôrmas e molde como de costume. Um cuidado: os cristais de chocolate são delicados. Mexer demais no chocolate enquanto ele está assentando e formando suas conexões pode afetar a estrutura dos cristais, e causar fat bloom. Tente não manipular demais o chocolate depois de despejar nas fôrmas.
  • Leve para resfriar e desenformar.

 

3. Com manteiga de cacau (seed tempering)

Manteiga de cacau em pedaços
Manteiga de cacau em pedaços.

 
Temperar o chocolate com manteiga de cacau envolve adicionar os cristais em sua forma ideal diretamente ao chocolate ao invés de criá-los com o choque térmico, utilizando alguma fonte de manteiga de cacau externa. Esse método é conhecido por facilitar muito o processo, por eliminar a necessidade de realizar um controle preciso de temperaturas à fim de criar os cristais beta V — você simplesmente os adiciona diretamente ao chocolate.

A gordura da manteiga de cacau possui a tendência de se solidificar na forma de qualquer cristal que estiver presente nela durante seu processo de resfriamento final. Neste método, é importante não resfriar demais o chocolate durante a temperagem, pois cristais instáveis podem se formar. Existem duas principais fontes de manteiga de cacau externas que garantem uma boa têmpera.

Temperagem Silk

silk da manteiga de cacau em pedaços
Pedaços de silk da manteiga de cacau dentro de uma tigela.

 
A famosa “Silk” é simplesmente manteiga de cacau temperada. A ideia é alimentar o chocolate derretido com uma quantidade de cristais beta V, induzindo sua cristalização sem ter de trabalhar sua curva de temperagem.

Como temperar chocolate com Silk

Pontos importantes

  • Nunca derreta seu Silk diretamente. Isso irá acabar com a têmpera e sua utilidade.
  • Rale finamente na proporção de 1% de Silk em relação à quantidade de chocolate que você está trabalhando. Por exemplo, se você está temperando 1kg de chocolate, use 10g de Silk.
  • Fique atento para não deixar a temperatura cair abaixo de 32 °C após o derretimento, pois seu chocolate pode ficar muito viscoso.
  • Caso seu chocolate não esteja na temperatura ideal de 34,5 °C, ou sua Silk esteja fria demais, ela pode não derreter completamente e a temperatura do seu chocolate pode cair abaixo de 32 °C. Nos dois casos, reaqueça a massa derretida levemente, cuidando para não ultrapassar 33,8 °C.

 

Instruções

  1. Derreta seu chocolate à 45-50 °C.
  2. Resfrie e estabilize sua temperatura em 34,5 °C.
  3. Adicione a Silk ao chocolate, mexendo até derreter e que a mistura esteja homogênea. Isso deve levar cerca de dois a três minutos. Ao fim desse processo, a temperatura da massa deve estar por volta de 32-33,8 °C e você deve ter um chocolate liso e homogêneo.
  4. Utilize o chocolate para moldar ou cobrir barras, trufas e bombons como de costume.

 

Temperagem com Mycryo

 

barry callebaut mycryo
Mycryo em uma colher.

A Mycryo é uma manteiga de cacau em pó, patenteada, produzida e distribuída pela marca de chocolates Barry Callebaut. Temperar com Mycryo é idêntico a temperar com Silk. Com diferença que o produto já vem em pó, não necessitando ser ralado.

Notas, resumo e conclusões

Temperar chocolate é uma tarefa complexa, que foi facilitada graças às tecnologias modernas. Etapa essencial na produção de qualquer bom produto de chocolate, o processo de temperagem não pode ser negligenciado. O estado e a qualidade da têmpera pode ser avaliado e mensurado utilizando temperímetros. A curva de temperagem pode ser controlada facilmente utilizando máquinas temperadeiras de chocolate. É possível induzir a formação de cristais beta V e beta VI estáveis acrescentando-os diretamente ao chocolate derretido. O melhor método para você irá depender das suas necessidades e recursos.